quarta-feira, 11 de março de 2015

Istambul


daquela barca lotada
no final da tarde
retive, entre outros esbarrões
seus olhos pintados
o pano verde que cobria
o cabelo preto, o corpo inteiro
os sapatos gastos, os pés
o lápis de olho
não me deixou decifrar
a estampa confusa
será que ela pensava no roxo
meio vinho, meio mordido
da minha boca machucada de frio?
do nosso diálogo de reflexo de vidro
retive dois espantos e o esquecimento
de uma luva caída no chão
ela, que nem percebeu
já abarcava ao seu bairro natal
eu, que pisava à Ásia pela primeira vez


eu, meu irmão e o semi desconhecido que nos acompanhou a viagem inteira sentamos na pedra mais larga procurando fotografias óbvias
as ruínas sob o pôr do sol
os pescadores, as burcas
as ciranças, sempre as crianças
quanto vazio na minha gaveta
que não tem aquele olhar registrado
o corpo nu da mulher de pano verde
o cheiro do pano verde, do cabelo preto
da festa de domingo com a vizinhança do bairro
da comida da mãe dela, do tempero de hortelã
é como se eu nem visse
como se eu nem cheirasse
como se eu nem ouvisse
como se eu nunca tivesse tocado
enquanto procuro entre
caravelas
cientistas
baleeiros de alto mar
tecnologias descartáveis
drones aéreos
computadores
alcoólatras
amarras
plásticos pretos rasgados
apontamentos
ordens
alarmes
citações
estoques de roubos
de furtos
de naufrágios
de piratas
breques
âncoras
armas
bêbados
a sintaxe exata
daquele olhar escrito
com lápis de olho
da minha boca pintada
de batom
de nós duas do outro lado do mundo
o café frio escorrendo escorrendo pelo ralo

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