Cinzeiro. Embora seja um artefato aparentemente banal, presente em uma infinidade de lugares, creio nunca ter lido a respeito ou, tampouco, ter presenciado uma conversa cujo tema central fosse esse. Pergunto-me, se é porque os cinzeiros - apesar das personalidades vivas e intrigantes que resguardam - pecam em demasia pela discrição, ou se é porque sou iniciante na rotina de fumar.
Passando a observá-los em diferentes ocasiões, notei o quanto variam em todos os sentidos: na matéria, na forma, nas dimensões e na arte. De fato, são seres distintos, como é raro deparar-se com dois cinzeiros iguais em lugares diferentes! Sei bem o que esperar de crianças que desenham uma estrela ou um coração. No entanto, imagino que apresentariam grande variedade de traços e cores ao desenharem cinzeiros. Mais curioso ainda é perceber quantos objetos, com funções primordiais divergentes, podem se transfigurar em cinzeiro. Já usei, por vezes, a tampa de uma garrafa, um potinho de sobremesas, copos variados, pires, cesta de lixo... E até mesmo janelas e o próprio chão já ocuparam o generoso cargo de “abrigador” de cinzas. Numa era de fôrmas e padrões, os cinzeiros continuam ímpares. Pergunto-me se é por serem íntegros ao ponto de preservarem suas originalidades ou se é porque são desprezíveis o bastante para quase nunca serem produzidos em grande escala.
Contudo, submersa na embriaguez de uma noite qualquer, de maneira estonteante e fabulosa, parece que descobri um submundo disfarçado. Por todos os cantos, pelos bares e pelas salas de estar... Foi quando passei a ouvir o que cada cinzeiro tinha a me dizer. Desse modo, passei a agregar um significado a cada um. Dentre os cinzeiros de nascença, sua arte e sofisticação costumam revelar o estilo e possível status do ambiente. Os cinzeiros mais requintados e chamativos apresentam afinidade com o hábito de fumar, ao passo que os pequenos e mais discretos apresentam certa aversão. O cinzeiro de bar é redondo, como uma roda de amigos, sem dúvidas, representa sociabilidade! ... No entanto, os que mais despertam a minha curiosidade são aqueles que beiram sempre o inusitado, os nascidos do improviso. Uma tampinha de garrafa fala de um fumo apressado, com ar de disfarce. O copo fala de um fim de noite preguiçoso, cadê o cinzeiro? A janela – ah, a janela - essa arranca um suspiro, fala de alívio, sossego... E por fim o chão, esse é liberdade, é quando a gente fuma descansado - pára e olha pro céu – derrama a cinza sem perceber que ela suja o chão...
E por aí vai, cada cinzeiro conta uma história diferente, cada um uma arte, uma idéia, um contorno. Cada um uma ocasião, um encontro, um lugar. Não existe cinzeiro por acaso... Por fim – preciso finalizar o texto antes que se acabe o meu cigarro e a minha paciência - diante da minha reflexão, dentre uma tragada e outra, surgiu a dúvida tenebrosa que põe em jogo a minha própria sanidade. Pergunto-me como foi possível viver tanto tempo sem perceber que todo cinzeiro tem algo a dizer, ou se, de fato, eles nada tem a dizer.