sábado, 21 de agosto de 2010

O que os cinzeiros têm a dizer

Cinzeiro. Embora seja um artefato aparentemente banal, presente em uma infinidade de lugares, creio nunca ter lido a respeito ou, tampouco, ter presenciado uma conversa cujo tema central fosse esse. Pergunto-me, se é porque os cinzeiros - apesar das personalidades vivas e intrigantes que resguardam - pecam em demasia pela discrição, ou se é porque sou iniciante na rotina de fumar.
Passando a observá-los em diferentes ocasiões, notei o quanto variam em todos os sentidos: na matéria, na forma, nas dimensões e na arte. De fato, são seres distintos, como é raro deparar-se com dois cinzeiros iguais em lugares diferentes! Sei bem o que esperar de crianças que desenham uma estrela ou um coração. No entanto, imagino que apresentariam grande variedade de traços e cores ao desenharem cinzeiros. Mais curioso ainda é perceber quantos objetos, com funções primordiais divergentes, podem se transfigurar em cinzeiro. Já usei, por vezes, a tampa de uma garrafa, um potinho de sobremesas, copos variados, pires, cesta de lixo... E até mesmo janelas e o próprio chão já ocuparam o generoso cargo de “abrigador” de cinzas. Numa era de fôrmas e padrões, os cinzeiros continuam ímpares. Pergunto-me se é por serem íntegros ao ponto de preservarem suas originalidades ou se é porque são desprezíveis o bastante para quase nunca serem produzidos em grande escala.
Contudo, submersa na embriaguez de uma noite qualquer, de maneira estonteante e fabulosa, parece que descobri um submundo disfarçado. Por todos os cantos, pelos bares e pelas salas de estar... Foi quando passei a ouvir o que cada cinzeiro tinha a me dizer. Desse modo, passei a agregar um significado a cada um. Dentre os cinzeiros de nascença, sua arte e sofisticação costumam revelar o estilo e possível status do ambiente. Os cinzeiros mais requintados e chamativos apresentam afinidade com o hábito de fumar, ao passo que os pequenos e mais discretos apresentam certa aversão. O cinzeiro de bar é redondo, como uma roda de amigos, sem dúvidas, representa sociabilidade! ... No entanto, os que mais despertam a minha curiosidade são aqueles que beiram sempre o inusitado, os nascidos do improviso. Uma tampinha de garrafa fala de um fumo apressado, com ar de disfarce. O copo fala de um fim de noite preguiçoso, cadê o cinzeiro? A janela – ah, a janela - essa arranca um suspiro, fala de alívio, sossego... E por fim o chão, esse é liberdade, é quando a gente fuma descansado - pára e olha pro céu – derrama a cinza sem perceber que ela suja o chão...
E por aí vai, cada cinzeiro conta uma história diferente, cada um uma arte, uma idéia, um contorno. Cada um uma ocasião, um encontro, um lugar. Não existe cinzeiro por acaso... Por fim – preciso finalizar o texto antes que se acabe o meu cigarro e a minha paciência - diante da minha reflexão, dentre uma tragada e outra, surgiu a dúvida tenebrosa que põe em jogo a minha própria sanidade. Pergunto-me como foi possível viver tanto tempo sem perceber que todo cinzeiro tem algo a dizer, ou se, de fato, eles nada tem a dizer.

7 comentários:

  1. Acho que já te falei sobre minha aversão a cigarros. Não sei se comentei sobre a aversão também a tudo o que se relaciona a eles: isqueiros, maços e cinzeiros.
    E aí veio você e mudou isso. Agora eu entendo e concordo com o que você queria dizer :) Adorei!

    Ainda assim, o Ministério da Saúde adverte...

    ResponderExcluir
  2. A essência do cinzeiro ficou muito bem expressa! Mas, pensando bem, será que há uma essência, ou apenas transição? Se for o caso, você acabou também mostrando (lindamente, por sinal) como a ideia de cinzeiro se desapega de uma forma para ir a outras tão inusitadas...

    Não fumo, mas curti muito =D

    ResponderExcluir
  3. Maria, li letras depois de escutar palavras.
    Meu apreço por seus devaneios se engradeceu!
    Adoraria saber mais...

    ResponderExcluir
  4. Cinzeiros abrigadores das nossas cinzas.. nas mais perfeitas palavras, o mais perfeito!

    ResponderExcluir
  5. Escrevi um mega comentário e perdi aqui, num tropeço tecnológico. Essas coisas irreversíveis que deixam a gente meio desestabilizada: minhas palavras(!), perdi. Era algo sobre nunca ter parado para reparar, mas que agora o farei. Sobre cinzeiros, quero dizer... Que triste, estava bonito o raciocínio. Volto ao que lembro, algumas reflexões de cinzas (poucas, nem perto de cinquenta).
    Aqui em casa odeiam cigarro, fumo quando estou sozinha. O cinzeiro é de cristal, lindo de morrer. Odeiam fumo, é enfeite.
    Penso sempre que minha (minha mesmo) casa terá muitos cinzeiros (provavelmente nenhum de cristal). Me imagino na janela da sala fumando, com um deles no parapeito ao meu lado. Um meio de latão com um mosaico de fotos de filme cult, estilo os que vendem nas lojinhas dos cinemas Estação. Bem bacaninha, eu gostaria. Não sei se terei sofá, mas cinzeiro é luxo com o qual posso contar.
    Quando era pequena sempre fazia cinzeiros de argilas nas aulas de artes. Levava para casa e dava de presente para minha mãe, que não fuma. Quem sabe era um incentivo? Ontem no bar, um amigo perguntou se o artista esculpe o mármore para fazer a escultura ou se só para achá-la lá dentro, onde sempre esteve. Que infinidade de cinzeiros perdidos dentro de bolos de argila, não é? E minha futura casa querendo tantos deles...
    Outra parada para parar para reparar (ui): extermínio de cinzeiros em bares. Acho uma forma grosseira de marginalizar os fumantes. De boa eu me levanto, saio do toldo, saio do teto, fico com o tempo que for acima da cabeça (sol, chuva, pode vir), fumo e dou um fim na guimba. Como vc disse, mil possibilidades de transmutar objetos rotineiros em recipiente propício a reunir a lambança restante do fumo. Mas seria mais fácil poder permanecer sentada, usar um cinzeiro e deixar copos, latas, garrafas e chão da rua em paz. Ou não, pode ser só o gosto de reclamar.

    ResponderExcluir
  6. Menina, quase não consigo provar pro teu blog que eu não sou um robô! Que crise. Já sou chegada a um autoquestionamento e cheia dos tropeços tecnológicos, não fico longe do "robô, será?". Acontece que não tava vendo o número. Tudo certo, já entendi. Sigo humana, por hora. Bjs

    ResponderExcluir