domingo, 5 de outubro de 2014

emoldurada, numa superfície de vidro, acordo ondulante, meu corpo naufraga num movimento ritmado, meu corpo é reflexo de um outro corpo refletido, emoldurado, com um desenho infantil nas costas, uma figura imprecisa e muito simples como são as formulações infantis, mal consigo abrir os olhos, não sei, se por sono ou se pela claridade intensa da manhã, que pela cortina quebrada invade o quarto, o armário branco e o espelho, se multiplica pelas paredes brancas x 4 e nos ataca de todas as direções

não, não podemos mais dormir, nossos corpos aceitam as ordens da luz da manhã, da sede do copo d'água, do miar do gato, que me acorda irremediavelmente às 6h, com olhar de dúvida como você bem reparou, obedeço ainda de olhos fechados, demoro a me situar ali, entre acordada e adormecida, diante de um homem, que, quando abro os olhos, está muito próximo dos meus olhos, não podemos ou não queremos mais dormir, simples e misteriosas são as formulações infantis 

a essa altura já me mexo inteira, como se agarrasse um ser que se agita e respira muito alto, também respiro assim, como se precisasse fugir ou gritar alguma coisa simples e misteriosa como são as cortinas quebradas ou formulações infantis

tempo de esbofetar, de roçar, de sentir, os dedos dos meus pés afundam como lanças em outros dedos de outros pés, sua pele tão clara, sua textura suave, seu rosto áspero, angustioso, um tapa na cara acelera tudo, mudo riso que de súbito evapora, rítmico suspense, choque sucessivo, simples e misterioso

seja que, no poema do mallarmé, os dados irrompem do branco do papel, seja que, o porteiro interfona, "foi que: o vizinho interfonou", enrolado em ironia ou mistério, precipitado, uivado, vai ver o vizinho não tem uma cortina quebrada, uma luz que invade o quarto, um homem de pau duro, o branco do papel a refletir como se, diante de si, a luz se multiplicasse e o corpo dele se movesse, como se luz fosse música, minha pupila se acostuma com a claridade, voltamos ao movimento dos corpos agora mais suaves, com barulho de música, sempre desconfiei que fosse dança

essa cortina quebrada que multiplica brancos, que invadem olhos que
se tocam, se fecham, se
abrem, por
lampejos de vergonha se
desviam, por
lampejos de disfarce se
cruzam, por
lampejos de através se
miram, por
lampejos de espelho se
desencontram, por  
lampejos de coragem se
encaram, por
um segundo muito simples e
misterioso como
a sua tatuagem de monstrinho